quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Memórias póstumas


MEMÓRIAS PÓSTUMAS

(de André Klotzel, Brasil, 2001, 101 min)
por Tarcito lear

É impressionante como André Klotzel em seu terceiro longa conseguiu transformar um clássico da literatura nacional numa pérola da sétima arte. Dando de dez em muito diretorzinho hollywoodiano. O diretor estudou cinema na universidade de São Paulo e nos deu a honra de produzir um filme nacional tão adorável com uma consistência reflexiva tremenda, que consegue entreter e ao mesmo tempo algo mais que pura diversão e que prende o telespectador, sem se assemelhar a filmes ultra pop, mas conseguindo a simpatia de mocinhas a titias de meia-idade. André Klotzel teve a tarefa, nada fácil, de adaptar pro cinema uma das obras mais famosas e discutidas de Machado de Assis: Memórias Póstumas de Brás Cubas. Após ganhar onze prêmios, em seu primeiro filme A marvada carne (1985), no festival de gramado, o diretor fatura mais cinco prêmios pelo longa-metragem Memórias Póstumas (2001), que tem no papel principal, o ator pra lá de brilhante, Reginaldo Faria, que interpreta Brás Cubas. André Klotzel mostra todo seu talento criativo, numa história narrada em primeira pessoa, cheia de agradáveis surpresas e momentos impagáveis que fazem um triunfo e uma jóia essa obra repleto de uma densidade existencial à cerca dos personagens.
O diretor terminou em 2008 as filmagens de seu último filme:
Reflexões de um liquidificador.

No início do filme somos apresentados a um morto-autor que com um ar de monotonia e nostalgia conta as histórias mais relevantes de sua vida.
Depois de sua morte, Brás Cubas resolve fazer um balanço de sua vidinha mundana. Não é uma história própria de espíritas kardecistas. Não. As lembranças de Brás Cubas nos transmite algo que não se assemelha a uma religiosidade de além-vida ou ultra-mundos. Nos conota algo de consciência existencial.
Brás lembra seu nascimento em berço burguês, sua inutilidade na juventude até chegar num dos pontos capitais da obra: seus amores. O primeiro amor de Brás é uma moça que não tem nada de ingênua e inocente, pelo contrário, Marcela é uma senhorita muito da interesseira, narcisista que deusifica sua beleza alimentando sua vaidade. Depois de gastar “fundos e mundos” com Marcela, Brás Cubas é mandado a Europa, pelo seu pai, para estudar direito antes que torrasse todas as finanças familiar. E é lá na Europa que Brás conhece “mil e um“ amores. É o seu período ultra-romântico. Após um longo período no exterior, Brás Cubas tem que voltar ao Brasil para ver sua mãe que está no leito de morte. E na chegada ao Brasil, Brás se vê pela primeira vez em frente ao problema da morte – no caso, de sua mãe.
Após a morte da mãe, ainda em dia de luto, Brás Cubas resolve esquecer o acontecido dando promessas de amor a uma jovenzinha linda, perfeita se não fosse o fato de ser coxa. (perceba a sinceridade e o realismo da obra) A donzela era perfeitamente linda aos olhos de Brás se não fosse o defeito físico da moça. Diz Brás: “Ela era bonita, mas coxa. São os tropeços da vida.” Ao voltar à corte, Brás Cubas encontra Virgília, que seria a arma pela qual o pai dele tentaria transformar Brás num deputado. A tentativa é frustrada, Virgília casa-se com Lobo Neves e este consegue o cargo de deputado almejado por Brás Cubas. Daí o mocinho reencontra-se com Marcela, que, agora, está envelhecida e pobre. Enquanto isso na casa dos Cubas, o pai de Brás tem um ataque cardíaco devido ao plano mal sucedido em transformar Brás num político e esposo de Virgília. Ao que acaba desencadeando a morte do patriarca dos Cubas. Com o passar do tempo, Brás Cubas se aproxima de Virgília, torna-se amigo do marido dela e é daí que começa o caso extraconjugal de Vigília com Brás Cubas. E é um realismo cruel apresentado na trama. Nada de “coloridinho” na amizade entre os dois. É traição, frustração, falsidade. Chegamos a um certo ponto do filme a imaginar um final feliz de Brás com Virgília. Mas mais uma vez o autor nos surpreende, mostrando um destino de solidão, mesquinhez e indiferença na vida dos personagens. A amizade com o filósofo de esquina Quincas Borba também é um ponto relevante na vida de Brás Cubas. O qual se torna conselheiro “meio” não seguido por Brás. Ao fim, Quincas vem a falecer e Brás está com seus sessenta anos e com uma idéia fixa na cabeça: a imortalidade - através do Emplasto Brás Cubas - que segundo ele resolveria os males da morte. E mais sarcasmo machadiano: O vento trás a pneumonia, a morte, até Brás Cubas. Que morre com Virgília em frente ao seu leito. Brás morre vazio e solitário. E que parece não concordar muito com a filosofia de Quincas Borba do qual sugere que a dor é uma ilusão.
Falar que as obras do Machado de Assis são geniais, já nos parece até clichê. E o filme de André Klotzel conseguiu se manter fiel a brilhante obra literária. Tal qual o livro, o filme se passa do autor falando para o telespectador de uma forma às vezes cínica e às vezes crítica (em relação à burguesia). Há uma dose altíssima da lucidez realista (do jeito que o Machado adoraria). Não aprofundam aquelas cenas melodramáticas sentimentalóides que louvam as mentiras sobre o amor. Pelo contrário, é tudo muito sincero, muito verdadeiro. Como Brás diz: "
A franqueza que revelo minha mediocridade. A franqueza é a primeira virtude do defunto."
A obra é um retrato existencial do ser humano. No início da ficção a história nos parece um conto mórbido, daquele estilo Poe que faz tremer a espinha ao nos anunciar a miserabilidade do destino humano, tão as nossas vistas e ao mesmo tempo tão camuflado. É brilhante esse balanço sobre a vida tão sincero, que a primeira vista nos parece hilário.
A ficção é um drama que esboça o tédio insosso que a vida teima em nos levar. A linguagem do filme é uma prosa poética típica do Machado de Assis. “O duelo do ser e o do não ser”, Talvez esta frase, proclamada por Brás Cubas, resumiria em linhas gerais – como se fosse possível! – essa obra magnificamente tão densa. Às vezes lembra Sartre em sua frieza pra fazer a gente abrir os olhos e acordar pra nossa existência. E por vezes lembra a máxima Shakesperiana: ‘Ser ou não ser, eis a questão’. Talvez Skakespeare não perdoaria a forma realista-crítica do ser ou não ser que o Machado e ,consequentemente o André Klotzel, tomou para si.
O Brás Cubas é um personagem envolvente, carismático e genial que faz com que seus excessos de sinceridade atrelada ao realismo não pareçam, de forma alguma, insubsistentes numa sociedade cheia de aparência e hipocrisia.
Quincas Borba também é um personagem que chama atenção. O filósofo que hora e outra aparece na ficção, não aparentou ter uma filosofia coerente em relação à vida de Brás.
As minha cenas prediletas não deixam de ser as duas horas mais filosofa-poeta de Brás Cubas: A conclusão que Brás chega em relação às roupas.("as roupas esconde a natureza humana")A grande importância, que passa desapercebido, das roupas: não é só uma questão de formalidade usar roupas. Como Brás conclui: "Se andássemos nus causaria o desinteresse pelo ser. Usar roupas é uma questão de perpetuar a espécie."
A outra cena de total relevância é justamente a última cena, que Brás com a lucidez da morte fala do que teve e do que não teve na vida. Diz que está quite com a vida, aliás leva uma vantagem sobre ela: A de não ter tido filhos. Sempre fora sonho de Brás ter um rebento, no entanto ele conclui o filme, passando um ar de paradoxo aos telespectadores, dizendo:
"Não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria."
E é essa última frase que enfatiza a moral que a obra retrata: o problema da existência. Nosso tédio, nossa monotonia, nossas conveniências, nosso egoísmo, nossas fraquezas, nossa hipocrisia, nossa tristeza, nossa vida, nossa morte. Uma tragédia sem sangue em que sua tragicidade consiste na desesperança que a velhice trás.
Todo um conjunto de mediocridade que assolam a natureza humana.
E por fim, eu não poderia deixar de citar a busca do remédio pra curar a melancolia da humanidade – o emplasto Brás cubas – um remédio que tem por utopia dar a imortabilidade ao ser humano. Como se isso fosse a solução de nossas infelicidades corriqueiras.